Valores e Henri Ford

Quando pensamos em valores, pensamos em um conjunto de coisas que norteiam a nossa forma de agir no mundo. Os valores nos habilitam a viver em sociedade de forma harmônica, equilibrada mas, quando estamos tratando de Yoga, o papel dos valores vai além disso, visando a construção de uma mente tranquila, porque esta é condição para o autoconhecimento.
Henri Ford tem uma frase famosa: “Qualidade é fazer certo quando ninguém está olhando”. Ele queria dizer que quando alguém faz o que é certo porque aquilo é um valor para ele e não porque alguém o controla, teremos um sistema da qualidade ideal. Da mesma forma, quando incorporamos um valor não precisamos mais de disciplina para segui-lo, nem de ninguém que nos controle ou nos aponte que o estamos negligenciando aqui ou ali, ele é tão parte de nós que o seguimos sem esforço e sem mesmo notar.
Uma vez havia sido recém contratado em uma empresa, na verdade estava ainda em período de experiência. Em poucos dias iríamos passar por uma auditoria importante, que definiria se manteríamos ou não uma certa certificação. Havíamos feito algo que fugia um pouco às normas administrativas e que poderia causar um impacto negativo, não a ponto de perder a certificação mas poderia anotar uma não conformidade. Meu chefe, uma engenheira e eu debatíamos como iríamos resolver aquela questão quando os dois desenvolveram uma abordagem que seria a de inventar uma história que escondesse o desvio. Estavam empolgados com a ideia é desenharam tudo o que precisava ser dito por mim para evitar a não conformidade. Interrompi o raciocínio deles e disse: “Só tem um probleminha nisso tudo: eu não minto…”. Houve um certo mal estar, a princípio me olharam me achando meio esquisito, depois se constrangeram um pouco por estarem bolando uma mentira e justificaram em que situações a mentira é válida. Argumentei que se estávamos mesmo em erro, deveríamos reconhecê-lo e mostrar como estávamos fazendo para evitar a repetição dele. Tive medo de ser demitido se insistisse no tema e medo de ter a fidelidade por aquele valor testada. Será que eu colocaria um emprego que eu e minha família precisavam tanto em risco para proteger a verdade? Por fim não foi necessário mentir, os fatos foram apresentados como ocorreram, os auditores aceitaram as condições atenuantes e não apontaram a não conformidade.
O valor pela verdade é um dos que corrompemos com mais facilidade porque pode gerar consequências que não estamos dispostos a lidar. Na ânsia de conservar um equilíbrio artificial no em torno, negligenciamos este valor esquecendo que a manutenção do “equilíbrio” externo através da mentira, não evita o desequilíbrio interno, uma vez que sempre que vamos de encontro a um valor, geramos uma fricção na mente, uma divisão entre o que acreditamos ser o correto e o que fazemos. Esta divisão prejudica o estudo de Vedanta, porque inibe a formação de uma mente tranquila que é fundamental para que o autoconhecimento se estabeleça.
Quando nos dedicamos ao estudo de Vedanta inevitavelmente a nossa forma de ver o mundo e agir nele é trasnformada.  Eventualmente seremos chamados de radicais, esquisitos, malucos mas o nosso “radicalismo” na observação de algum valor, na verdade é uma coerência, uma compreensão de que um Yogi não incorpora um conjunto de valores para parecer melhor para o mundo e nem precisa que o mundo note isso, um Yogi incorpora os valores para cuidar da própria mente para que ela esteja sem conflitos, tranquila, receptiva ao autoconhecimento. Voltando à Henri Ford, aplicamos um valor mesmo quando ninguém está olhando porque afinal, nós mesmos estamos olhando, somos responsáveis pelas nossas mentes e cuidamos dela. Estudamos os valores e sabemos que os seguimos porque estamos interessados no maior dos valores: o valor por uma mente tranquila, sem a qual o autoconhecimento é impossível. Harih Om.

Valores e Henri Ford

PÉS NO CHÃO

imageNada como tirar os tênis ao fim do dia, espalhar os dedos, sentir a liberdade dos pés descalços, colocar os pés no chão, na grama, na terra, na areia. Pés no chão é enraizamento, é retomar contato com a mãe terra, sentir as energias telúricas, é liberdade, aterramento, conexão, objetividade, é essencialmente resgatar a simplicidade da vida. Ser pé no chão é compreender a Ordem que rege todas as coisas, através das leis do universo, inclusive o que acontece com você. É enxergar a perfeição dessas leis e confiar. Confiar a ponto de aceitar que você é responsável por tudo o que lhe acontece, bom ou ruim. O que lhe acontece agora de bom é uma benção, sem dúvida, mas é resultado de suas ações, você merece, aceite e agradeça. Mas o que lhe acontece de ruim, é também resultado de suas ações, aceite e agradeça também. Ser pé no chão é compreender que você é completo, pleno, que não há espaço a ser preenchido, por isso não cria expectativas em relação ao comportamento das pessoas. Definitivamente elas não têm responsabilidade nenhuma em fazer você feliz, livre-se disso, você é a própria felicidade, seja livre e liberte as pessoas à sua volta desta responsabilidade sem sentido. Ser pé no chão é estar no exato momento e lugar em que seus pés estão. É desapegar-se do passado e livrar-se das expectativas do futuro, liberte a sua mente deste jogo de apegos, mágoas, medos, nostalgia, raiva, expectativas, reclamações, insatisfações, daquele “quando isto acontecer eu vou ser feliz!”. Ser pé no chão é compreender que toda ação tem um impacto e que você é responsável por ele, assim você procura agir no mundo de forma a sustentar o equilíbrio. Por isso o pé no chão não acha que o aquecimento global é uma teoria infundada e diz que não tem nada com isso, esse discurso já deixou de fazer sentido há muito tempo, o pé no chão assume o seu papel na preservação do planeta e vive de forma sustentável. Ser pé no chão é não terceirizar a responsabilidade de um mundo melhor, mais justo, honesto, harmonioso porque você sabe que a qualidade do mundo à sua volta depende primeiro de você. Por isso o pé no chão não abre o verbo queixando-se da corrupção e beneficia-se dela comprando um policial em uma blitz, ou soltando um dinheiro para conseguir uma vantagem qualquer. Ser pé no chão é saber que se você quer que lhe digam a verdade, você deve dizê-la também, se você quer ser tratado com respeito, você respeita primeiro, o pé no chão entrega ao outro exatamente o que quer receber. Ser pé no chão no caminho espiritual é entender que a religião não nos afasta ou nos diferencia, mas nos aproxima, no sentido de que na religião buscamos nos conectar de alguma forma com essa Ordem que a tudo governa, não importa como seja chamada, importa é que cada uma delas ensina valores que nos ajudam nessa conexão, por isso, seja qual for a sua religião, por coerência, siga seus valores e aceite que todos se conectam de alguma forma podendo até prescindir de uma religião, podem apenas ter um estilo de vida que lhe conecte, e o pé no chão está muito confortável com isso, não se acha mais certo que ninguém. O pé no chão no trânsito não é aquele que dirige descalço mas aquele que compreende que seu tempo não é mais precioso que o de qualquer outra pessoa, ele aguarda a sua vez como qualquer um, esquece a buzina, não xinga, dá a vez, não joga o carro em cima dos outros, não estaciona onde não deve, ele pode até não concordar com as regras de trânsito mas não se dá o direito de infringi-las. Ser pé no chão é entender que grande parte do estresse em sua vida diz respeito a necessidades que você não tem, afinal você é completo, lembra? Casa, carro, objetos, relacionamentos não podem lhe dar o que você já tem, apenas lhe oferecem experiências boas que você atribui a esses objetos e relacionamentos, mas essas experiências não tem sustentação, vem, vão e sempre demandarão novas. Elas apenas nos manterão distraídos no mundo, esquecidos do que verdadeiramente somos. Ser pé no chão é reconhecer que somos agora toda a felicidade que buscamos, eliminando o sentimento de inadequação, de incompletude. Ser pé no chão é ser livre de qualquer padrão de beleza, é ser livre de diferenças sociais, culturais, políticas, sexuais, étnicas ou religiosas. Ser pé no chão é enfim, liberdade. Harih Om!

PÉS NO CHÃO

Sobre Dharma , Hangout e Eu

A ideia deste texto não é explicar o que é Dharma, apenas falar um pouco sobre o que acontece em nós quando fugimos à ação. Como insistir em fugir ao nosso papel nas situações diante do mundo acumula marcas profundas no coração, reforçando a ignorância de si mesmo, constituindo assim, uma ação que dificulta o autoconhecimento.
Desde o momento em que abrimos os olhos pela manhã até fechá-los à noite, não podemos evitar agir. Essas ações vão daquelas simples como o próprio abrir dos olhos até outras tantas mais complexas que afetam a sua vida e de outros. Então, se é impossível fugir à ação, também é impossível fugir ao resultado dela e seus frutos, por isso é prudente agir com discriminação, para que esses resultados sejam sempre aqueles que contribuam para a harmonia.
No fluxo de situações, nos vemos diante das grandes ou pequenas decisões, em geral sabemos qual a ação mais adequada, baseada em nossos valores, código de conduta e nos impactos que vislumbramos. Porém, nossas escolhas são subordinadas a um conjunto de condicionamentos e impressões psíquicas que definem como agiremos, em intensidade, direção e sentido. Por isso, muitas vezes apesar de sabermos qual o nosso papel na situação, qual a ação adequada para o contexto, decidimos por outra, fugimos à ação que sabemos ser a mais adequada, gerando atrito, divisão interior.
Fui criado em torno de uma atmosfera de medo, meu pai sempre teve muito medo que algo de ruim acontecesse comigo ou minhas irmãs, ao mesmo tempo que haviam muitas expectativas em torno de mim para que eu fosse um menino com as mesmas habilidades dele. Deveria assim, evitar os perigos de um mundo potencialmente perigoso e ao mesmo tempo ser impetuoso e aventureiro. Isso imprimiu em meu coração desde cedo um sentimento de inadequação e insegurança, inadequado aos anseios de meu pai e inseguro em relação ao mundo. Diante de situações em que estaria em foco sob o risco de falhar diante das pessoas simplesmente me recolhia, fugia mesmo, evitando a vergonha, que simbolizava envergonhar o meu pai e perder o seu amor. Se o mundo era perigoso eu não tinha ferramentas interiores nem para verificar se isso era mesmo verdade. Se eu tinha alguma tendência a introspecção e timidez estas se estabeleceram fortemente, me isolando num mundo silencioso, auto-suficiente, me distraindo com fantasias em que eu era tudo o que achava que deveria ser para agradar meu pai e por consequência o mundo. No mundo real era um nada, na fantasia um herói admirado por todos. Me confortava e acalmava, aplacando a minha solidão vivendo o arquétipo do herói que jamais seria.
Passei boa parte de minha vida tentando resolver essa questão, que afetava a minha vida afetiva, social e profissional. Vi o mundo de longe, preso ao mundo seguro que construí. Aprendi a evitar ou adiar as situações de exposição, quando essas eram inevitáveis, abreviava ao máximo, jogando fora momentos preciosos de crescimento. Passei por escola, faculdade, como um observador do mundo, me via com a mesma importância para esses meios que um tijolo qualquer na parede. Só ao fim da faculdade que comecei a correr riscos, dedicando-me a alguns esportes individuais e de aventura, depois morei na Alemanha um tempo, iniciei minha vida profissional em uma transnacional alemã, fiz teatro, tudo isso foi me fortalecendo mas sempre tive dificuldade de me inserir em grupos.
Hoje aos cinquenta e dois anos, muita coisa melhorou, muita coisa conquistada. Meu estado natural é estar bem, de verdade, sem construção ou máscara, sem euforias ou depressões, mas de certa forma aprendi a fugir da ação, quando esta me coloca em cheque, evito as situações que despertam o menino medroso, chorão e inseguro, estar bem demanda não mexer com isso.
Semana passada me vi num curso online diante de um botão para entrar no Hangout e completamente paralisado. Dada a natureza do curso, não podia negar o sentimento, não podia negar o extremo daquele impasse. Não pude apertar o botão, me escondi de novo na segurança oculta de minha casa, feliz por não poder ser alvo de perguntas, por não estar exposto ao erro, à vergonha de errar, de não saber. Sim, havia uma certa sensação de segurança em não entrar na sala mas a sensação de derrota para os mecanismos de autodepreciação da mente, foram muito piores. A constatação de que apenas fugi à ação tantas vezes ao longo de minha vida, que tantas vezes desperdicei a oportunidade de virar essa página, mesmo experimentando a sensação de derrota, de fracasso frente aos desafios de autocura, que me conformei em viver sem utilizar todo o meu potencial, me mostrou com todas as letras que fugir ao Dharma deixa marcas profundas, mesmo que as pessoas à volta não percebam ou sejam feridas pela omissão, essas marcas reforçam a culpa, o medo, a divisão, a imagem de não adequação, reforçam enfim a ignorância existencial que se contrapõe ao autoconhecimento. Quando entendemos que o propósito da vida é a liberdade deste sentimento de limitação, não faz sentido fugir o tempo todo, é necessário de vez em quando, retirar algumas questões das sombras da mente e tentar lidar com elas de novo, novamente e mais tantas vezes quanto forem necessárias até que retiremos delas a realidade que nunca tiveram.

Sobre Dharma , Hangout e Eu

Religião e Espiritualidade

Conheço pessoas de várias religiões com alto grau de espiritualidade mas também conheço muitas em várias delas sem espiritualidade alguma e ainda conheço outras extremamente espiritualizadas mas que não pertencem a nenhum grupo religioso. Então, espiritualidade e religião são coisas diferentes e independentes. Mas o que inclui espiritualidade na religião? O que nos torna seres espiritualizados e o que nos afasta da espiritualidade?

Ao longo de minha vida frequentei muitos centros religiosos, particularmente me sinto muito bem em todos eles, gosto da energia de lugares de oração, das pessoas, mesmo que discorde da visão sinto-me à vontade e aprendo alguma coisa. Gosto de ver como as pessoas se conectam com a forma de ver Deus que a sua religião propõe, gosto de sentir como as pessoas se acolhem, como tentam entender os conceitos ensinados e aplicar os valores propostos.

Havia algo em comum em todos esses lugares: as pessoas que estavam ali estavam de alguma forma buscando atenuar ou livrar-se de algum sofrimento, inclusive eu. A espiritualidade acontecia ou não, conforme a forma que elas entendiam que esse sofrimento iria ser atenuado ou resolvido. Aqueles que entendiam que a religião sozinha, ou a simples verbalização dos ensinamentos ali aprendidos sem interiorizá-los iria resolver definitivamente seu sofrimento, não conseguiam se espiritualizar, repetiam ali um mecanismo em que se o mundo é o responsável pelo sofrimento, algo externo também deveria ser o responsável por eliminá-lo, esse seria o papel mágico da religião. Diante disso e da necessidade de serem aceitos naquele círculo, repetiam os ensinamentos e se comportavam da forma que achavam que deveriam para sentirem-se inseridos e acolhidos por aquela comunidade, acreditando que assim estavam fazendo algo para cessar o sofrimento mas, mantinham-se na superficialidade, repetindo seus padrões de pensamento e não resolvendo o problema original.

Aqueles que se entendiam como a solução do sofrimento tornavam-se pessoas espiritualizadas, porque percebiam que o papel da religião não era conceder um prêmio ao fim da jornada mas, oferecer as ferramentas necessárias na forma de conhecimento, valores, rituais, visão e de um grupo com objetivo comum que dariam o suporte necessário para manterem-se firmes na mudança de visão do mundo e de si próprias.

Então, espiritualidade está mais relacionada a uma atitude diante da vida, a uma visão clara de que o sofrimento não é resultado das dores provocadas por eventos externos e ainda de que não temos nenhum controle sobre tais eventos. Por isso é que em qualquer religião, ou mesmo fora dela, encontramos pessoas espiritualizadas porque espiritualidade está intimamente ligada à maturidade espiritual de cada um e não à religião.

Por isso também que não existe religião melhor, se a religião ou o estilo de vida que escolhemos nos coloca como solução para o sofrimento, se não nos acrescenta mais sofrimento, na forma de culpa, medo, preconceito, sentimento de separação do mundo e de Deus, ou qualquer sentimento que nos faça sentir mais inadequado ainda, esta religião ou estilo de vida irá nos conduzir à liberdade do sofrimento, apesar das dores da vida.
Harih Om!

Religião e Espiritualidade

Pai

Tarde de sábado, recebo o telefonema de meu sobrinho, com voz assustada: ”Tio, o vovô está passando mal, não fala coisa com coisa e não quer ir ao hospital. Já chamamos a ambulância! ”.

Quando era criança ouvia as histórias que meu pai contava sobre suas aventuras na Alemanha, onde viveu entre um e dezesseis anos de idade, ficava fascinado com a riqueza de detalhes, sua coragem e em como ele liderava o grupo de meninos naquele período que incluía uma Alemanha em ascensão, uma guerra mundial, bombardeios, cidade invadida, fome e retorno ao Brasil. De um lado era incrível, mas por outro me oprimia porque eu era seu oposto, um menino tímido, medroso, chorão e que vivia isolado, não tinha um grupo de meninos para liderar e nem mesmo para me massacrar. Na minha inocente visão eu era uma tremenda decepção para meu pai, sentia-me triste, inadequado, como se não preenchesse as necessidades e expectativas dele como filho. De meu lado minhas necessidades por amor e família pareciam que só seriam preenchidas se eu fosse outra pessoa. Aprendi a me esconder quando tinha vontade de chorar, quando ele levava minhas irmãs para brincar em carrinhos de parque, coisa que qualquer menino ficaria entusiasmado eu, ao contrário de minhas irmãs, não queria ir por medo de decepcionar meu pai não conseguindo dirigir o carrinho como ele teria feito na minha idade, ficava olhando elas e outros meninos se divertirem diante de pais satisfeitos e felizes ao mesmo tempo que via a tristeza no olhar de meu pai. Estabeleceu-se aí um mecanismo interior destruidor de comparação entre mim e um padrão externo, na forma primeiro de meu pai e depois de muitos à minha volta, onde sempre dava um jeito de me inferiorizar, aprendi mais tarde que chamam isso de complexo de inferioridade. Muitos anos se passaram, trabalhei duro para resolver aquelas questões da infância e pude conhecer ao longo da vida o quanto meu pai me amava, como se esforçava para me alcançar, como amadureceu como homem e pai no processo, como passou por cima dos próprios medos para me salvar, me resgatar do mundo quase autista que estava me metendo, como teve que tomar decisões duras para ele que fizeram um diferença crucial em minha vida, minha necessidade por amor, família e também segurança foram se preenchendo e assumiram uma proporção linda repleta de amor.

Este pai, a partir daquele telefonema podia estar morrendo, indo embora, como podia ser? Ele estava tão bem semana passada, feliz, andando de moto por aí. Meu corpo foi tomado por um calafrio, meu coração parecia que tinha parado, perplexo, incrédulo, por algumas frações de segundos saí do ar, tão brevemente que meu sobrinho nem percebeu. Então entrei em estado de prontidão e respondi: ”Estou indo para aí! ”.

Dirigi como um louco pelas ruas da cidade tentando chegar o mais rapidamente possível. Tão louco e imprudente, que hoje sempre considero que alguém que está dirigindo como um alucinado, nem sempre é um idiota irresponsável, mas um filho desesperado querendo salvar o próprio pai como eu naquela tarde de sábado. Dirigia imaginando que meu amado pai estava tendo um AVC, tentava controlar a tristeza, o medo e me concentrava em dirigir, cada segundo contava muito e dirigia mais rápido, mais agressivo.

Meus pais moram no fim de uma servidão que subi correndo, entrei como um furacão na casa de meus pais e encontrei meu paizinho, recostado na poltrona reclinável, urinado, com a cabeça caída de lado, balbuciando frases sem nexo. O choque daquela visão, foi atenuado pelo meu estado emocional, estava com a adrenalina a mil e um sentido de urgência que não permitiam que eu acessasse meu coração, como que se eu permitisse isso eu desmontaria e não conseguiria salvar meu pai.  Mas esse estado deu um tom forte demais, autoritário mesmo, quando falei que ele precisava vir comigo ao hospital. Ele, com muita confusão mental, não conseguiu fixar seus sempre vibrantes olhos azuis nos meus mas senti que ele estranhou, não gostou do meu tom, franziu a testa. Ignorei essa sutil mensagem e fiquei louco de raiva, desesperado, precisava levá-lo e vi que ele não podia cooperar, tentei ser mais contundente ainda, gritava, puxava seu braço, ele se recusando, dizendo que estava bem, que só queria dormir um pouco. Me causava uma tristeza enorme falar com ele daquele jeito, cada palavra acima do tom feria a mim também, sangrava duplamente. A ambulância não chegava, era impossível carregá-lo escada abaixo, mesmo com a ajuda de meu sobrinho, a única forma de tirá-lo de lá era andando. Mas como? Fui tomado por medo, medo de não conseguir tirá-lo dali, de vê-lo morrer na minha frente, medo de não conseguir evitar uma sequela maior. Não podia permitir que o medo me paralisasse, eu tinha que continuar tentando. Olhei em volta e senti o peso da responsabilidade diante dos olhares emocionados, assustados de minha mãe, meu sobrinho e minha irmã, senti que depositavam suas esperanças em mim. Mas no fundo eu ainda era aquele menino assustado, numa luta interna com minhas emoções, impotente diante daquela situação, rezava por ajuda, uma saída. Com muito custo consegui que ele se levantasse e fosse conosco até a varanda e iniciamos os primeiros degraus de descida, mas ele resistia, minha irmã caminhava atrás com uma cadeira para ampará-lo caso necessário, mas ele continuava a puxar para trás querendo voltar para casa, sem nenhum equilíbrio. Então, me ocorreu que meu pai sempre foi muito firme em suas ideias e mesmo naquela condição, jamais faria nada contra a sua vontade, nem se submeteria ao tom que eu estava imprimindo ao que dizia e fazia, errei feio em minha conduta. Mas por outro lado, sempre se interessou muito por tudo dos filhos, por isso, mudei a estratégia, convidando-o a ir lá em casa ver uma coisa legal que tinha comprado. Por um milagre ele se interessou, relaxou o corpo e se virou na direção desejada o que nos permitiu seguir escada abaixo, foi um alivio perceber que mesmo com dificuldade, conseguíamos avançar e estávamos saindo dali, senti esperança pela primeira vez, quase comemorei aquela pequena conquista. Na rua encontramos a minha irmã mais velha que aguardava nervosa a ambulância. Chegamos ao carro, prendemos meu pai ao cinto e partimos, meu sobrinho e eu.

Mais uma correria louca pela cidade rumo ao hospital. Motoristas sensíveis ao pisca-alerta, faróis e a algumas buzinadas, abriam caminho para nós, não esperava essa reação, em meio à adrenalina havia espaço para me encher de gratidão por cada um deles. Tentava não desabar em desespero, precisava conter a tristeza, o medo, segurar o choro, a dor alucinante que rasgava meu coração, a pressão nos olhos querendo vazar em lágrimas, tudo isso tinha que esperar até entregar meu pai aos cuidados médicos. Precisava manter-me alerta, precisava chegar, precisava ser rápido, precisava chegar, precisava salvar meu pai, não só sua vida mas o pai que conhecia, amava e admirava do fundo de minha alma, precisava ainda ouvir as suas histórias cheias de detalhes, contadas sem pressa, precisava beijar ele ainda mais, abraçá-lo fazer festa sempre que o visse e receber sua festa sempre que me via, precisava mais tempo ao seu lado, não queria me despedir ali, não queria somente o corpo vivo queria meu pai inteiro.

Chegamos ao hospital, pegamos uma cadeira de rodas e corremos para a urgência, fomos prontamente atendidos, entrei com meu pai, e acompanhei os procedimentos. Ele sobreviveria? E se sobrevivesse, quais seriam as sequelas? A adrenalina começou a baixar, mas ao contrário do que imaginava não desabei em choro, alguma coisa me confortava, sentia que ele ia ficar bem. Aguardei aquele momento para me entregar à dor e surpreendentemente fui tomado por tranquilidade e confiança.

Meu pai foi medicado, internado, nos revezamos acompanhando seus progressos. Para nossa alegria, fomos abençoados com o melhor dos prognósticos, dois dias depois ele estava em casa, nenhuma sequela motora, talvez uma pequena perda de audição, ficou tão bem que tivemos muita dificuldade de convencê-lo que teve uma isquemia e que por muita sorte não morreu ou teve sequelas. Na verdade, ele não acreditou totalmente mas pelo menos o suficiente para convencer-se que precisava parar de fumar e realmente parou, de uma tacada só, que orgulho!

Seis anos se passaram e nosso amado pai continua entre nós, nos brindando com seu jeito brincalhão, generoso, sempre com boas histórias para contar e sua incrível memória discorrendo a história aprendida enquanto ela acontecia, graças a um hábito de uma vida de ler jornais diariamente. Sou um homem muito afortunado de poder conviver com um ser humano tão especial por tantos anos e ainda poder chamá-lo de pai, sei que um dia ele vai nos deixar, esse é o ciclo natural da vida, mas choro de tristeza sempre que imagino esse momento, como agora… que saudade sentirei, mas até lá vou te curtir muito pai, meu amor, minha inspiração…te amo! Harih Om!

Esse texto sobre uma dificuldade enfrentada na vida foi escrito por Roberto Funger aluno da turma Ganesha

Pai

Cinco Passos

Posso dividir meu caminho espiritual até aqui em cinco períodos, o primeiro foi na adolescência motivado por pura curiosidade juvenil a respeito de pirâmides, se os deuses eram astronautas ou não, triangulo das Bermudas, viagens astrais, percepção extra-sensorial, consumia avidamente revistas especializadas, livros de rodoviária de autores curiosos como Lopsang Rampa (!!) ou livros absurdos como “A Terra Oca” (!!). O mais próximo de algo de conteúdo foi um velho livro de Krishnamurti que encontramos e tentamos inutilmente decifrar, esse período de consumo de informações duvidosas terminou quando entrei na faculdade. O segundo período foi já depois da faculdade quando fui muito amigo de uma médium, o que me ofereceu a oportunidade de conversar com as entidades que ela incorporava e entender um pouco mais sobre o mundo espiritual, o que naturalmente me conduziu ao terceiro período que foi estudar de verdade esse mundo através das obras de Kardec, Chico Xavier, Divaldo entre outros. Foi um período muito rico, de grande transformação e desenvolvimento pessoal, porém a mensagem parecia incompleta. Um dia um amigo meu me falou entusiasmado sobre um centro de canto e meditação no Rio de Janeiro e disse que haveria um encontro de ano novo onde seria apresentado o tema de estudos para aquele ano. Então, posso dizer que em dois de janeiro de 2003, marcando o início do quarto período, me reencontrei com o Yoga. Tive a sorte de não começar numa aula de Asanas porque com a rigidez do meu corpo germânico à época, talvez eu demorasse mais um pouco para dar chance ao Yoga mas, daquela forma algumas respostas pendentes pareciam estar disponíveis ali e minha busca espiritual parecia ter chegado ao fim. Dediquei-me de imediato ao estudo, porém, aos poucos descobri que existiam linhas de ensinamento dentro do Yoga e naquela faltava um elemento de consistência que encontrei em 2005 no curso de formação de professores de Yoga, quando conheci o Vedanta, iniciando o último período. A visão fora apresentada, mas só ganhou corpo dois anos depois, quando comecei a estudar com Pedro Kupfer e Gloria Arieira, mais tarde com Swami Dayananda e finalmente este ano com Jonas Masetti. Nestes anos de estudos e vida de yoga, posso dizer que a visão de Vedanta transformou todos os aspectos de minha vida, desde a forma de ensinar o Yoga, quando passei a introduzir os ensinamentos de Vedanta nas aulas. Passando pela minha vida profissional quando consigo com muito mais serenidade conviver com as pressões de uma vida corporativa. Permeando todos os meus relacionamentos, afetivos, familiares, profissionais, sociais, que ganharam uma nova perspectiva, simplificada, leve, livre, compassiva, inclusive comigo mesmo! Tenho muito o que apreender, muito a transformar em hábitos mas sigo em meu Sadhana com muita gratidão a este conhecimento tão especial e aos tantos mestres que o trouxeram até aqui. Que eu possa contribuir de alguma forma para que a corrente de ensinamento jamais se rompa. Harih Om!

Esse texto sobre o encontro com Vedanta foi escrito por Roberto Funger.

Cinco Passos